09 dezembro 2015

Para ti Nick


Uma carta para o meu cãozinho que partiu


Olá Nick. Nunca aprendeste a ler. Para piorar, nasceste surdo. Mas de alguma forma, divina e misteriosa, tenho esperanças que hoje, dois dias depois de teres partido, recebas esta pequena mensagem.
Estavas muito doentinho. Sofrias e recuperavas, num pequeno ciclo indesejável: Por mais que sofresses, sempre voltavas a ficar energético e feliz. Até que chegou o dia em que não voltaste a ficar bem. Tivemos que te levar ao doutor e te deixar dormir. Foi a viagem de carro mais dolorosa que já fiz.
Adormeceste no meu braço, com a língua de fora como sempre ficavas.
Te beijei na cara e no focinho, e senti um cheiro que vinha dos teus pêlos igual ao cheiro que tinhas quando eras bebé e te vi pela primeira vez, há 14 anos atrás. Sei que soa estranho, e que talvez pareça que seja a minha mente a pregar partidas, mas é a realidade. Sentir esse cheiro vindo de ti me teleportou a quando estava no carro, contigo em cima de mim, no meu colo, a me olhar de uma forma estranha porque não me reconhecias. Do teu lado estava a tua irmã, Lenita, no colo do meu primo. Estava feliz porque estava levando comigo um novo amigo para me acompanhar.
Lembro-me do teu pai ter a tua cor, branco e com manchas, mas maior e gordinho. E a tua mãe, castanha, da cor da tua irmã, triste por estarmos a levar os filhos dela. Espero que os encontres agora, se existir um após-vida, e que eles nos tenham perdoado por termos levado os seus filhotes.
Quando chegamos, fomos à casa dos meus avós, e o meu avô ficou a olhar para ti e te chamou de feio. Tinhas os olhos muito grandes, e tortos, estrábico; e a tua cauda era igual à de um porquinho, enrolada como uma mola. Esses teus dois traços desapareceram com o tempo, os teus olhos mantiveram-se lindos e grandes, mas endireitaram-se, e a tua cauda ficou recta.
Se houve um dia mais especial que esse, foi o dia que te levamos ao veterinário pela primeira vez. Fomos fazer um check-up e saber mais sobre a pequena hérnia que tinhas no umbigo. E comprámos a tua primeira trela e a tua primeira coleira, as duas vermelhas porque a minha mãe se convenceu que eras do Benfica. E agora, sempre que alguém lhe perguntava qual o clube que ela apoiava, ela respondia:
“Eu e toda a família somos do Benfica, até o cão”.



Depressa aprendeste o significado da trela. Sempre que eu pegava nela, que ficava pendurada junto à despensa da cozinha, abanavas a cauda e ficavas com o pescoço junto da minha perna, já sabias que era para ir à rua ver os teus amigos. E durante os passeios que tinha contigo, sempre na mesma rua e sempre nos mesmos lugares, arranjavas prazer no Inverno, quando o vento vinha com força. Ficavas parado, só parado, no meio do nada, a sentir o vento a bater com força no teu pequeno focinho.


E fiz desse teu pequeno prazer uma brincadeira: adorava soprar para o teu focinho enquanto lambias o ar para apanhar o fresco.
Essa tua pequena hérnia no umbigo, apesar de engraçada no inicio, começou a crescer e a se tornar uma ameaça. Lembro-me um dia, que a minha mãe te levou para a escola onde ela trabalhava e eu estudava. Lembro-me que estava a ir para a aula e ouvi um ganir intenso, fui a correr procurar por ti, estavas na salinha dos funcionários, e tua hérnia estava cinza e inchada. Tivemos que te submeter a uma operação para a retirar.


A operação durou uma eternidade, mas correu bem. Quando chegaste tinhas a típica coleira que parece um prato, para não lamberes os pontos. Recuperaste rápido.
Passava horas a brincar contigo. Ladravas muito alto e me mordias com força, era uma pequena guerra inocente entre uma criança e um cão. Lembro-me que a regra do jogo era eu ficar quieto, na cama. Se me mexesse me atacavas. Eras assim, brincalhão. Eu e a minha prima Jessica fizemos vários vídeos a brincar contigo.




Mas melhor ainda que tu a latir feito doido para o vídeo, eram as poses que fazias para a camera fotográfica. Como eu desejava que falasses, mais uma vez eu e a minha prima fizemos um vídeo teu, desta vez contigo a ser entrevistado para um noticiário nacional.




Na rua, entre os meus amigos, eras temido porque mordias. Por seres surdo tinhas uma percepção desconfiada do mundo e, para ti, quase tudo era hostil. A minha mãe dizia que isso começou quando um dia, um menino estava a te acarinhar e de repente te deu um pontapé. Triste.
Era divertido fugir de ti e te ver a correr e a ladrar para me apanhar. Fazíamos mil e uma brincadeiras diferentes. Lembro-me uma vez de estar no pavilhão da escola, durante as férias porque a mãe trabalhava lá, tudo vazio. E de te empurrar pelo chão escorregadio. Escorregavas pelo fundo do corredor e voltavas a correr para mim para te empurrar e te fazer escorregar de novo. E depois me mordias, com carinho.


Escondido debaixo das cadeiras da cozinha, o teu lugar favorito enquanto a minha mãe cozinhava para ti.

Apesar de tantas brincadeiras, nunca gostaste de brinquedos. Comprei-te umas bolas pequeninas, e fugias delas. Comprei-te uma galinha de plástico que fazia um som quando era apertada, e odiaste. Brinquedos eram inúteis para ti, mas snacks & guloseimas já não.
Gostavas de umas tiras fininhas que se comprava no mercadinho do Dia, e de uns rolinhos com uma parte mais escura dentro. Mas quando te dava o snack, ias embora com ele antes de o comer para garantir que ninguém to tirava. Eras sempre desconfiado, de outros cães e de humanos.
E aproveitando a tua desconfiança, eu e a minha mãe gostávamos de te provocar. Às vezes íamos atrás de ti e começávamos a te tocar na perna, ligeiramente, até ficares irritado. Não conseguias escapar, porque se te virasses para mim, a minha mãe te apertava, se te virasses para ela, eu te apertava. Ficavas muito irritado mas depois te abraçávamos e ficavas feliz porque sabias que era só provocação.
Na praia é que corrias imenso atrás de mim. Mas nunca percebi se gostavas de praia ou não. Sei que odiavas a água, sempre ficavas para trás quando a minha tia Tata atirava pedras e todos os cães iam para a água tentar apanhar. Só tu ficavas de fora, na beira, a olhar, sozinho, esperando que todos voltassem.
Só tu ficavas de fora, na beira, a olhar, sozinho, esperando que todos voltassem.


Tu, a levar com o vento na cara como sempre, eu, a Sandula, a Mizé e a Huila.

Enquanto aqui estiveste, viveste comigo, com a minha mãe, o meu pai, a minha tia, os meus avós e os teus amigos da mesma espécie. Enquanto aqui estiveste, muitos dos teus amigos partiram: o Chico, a Huila, a Sandula, a Mizé, a Marquinhas & o Malaquias, o Shissue, a Cassiana, e a tua irmã, Lenita.
O ciclo da vida é tramado. Tão tramado quanto a tua desobediência perante o jornal. Aprendeste a fazer xixi nele, mas tudo o resto fazias no chão. Mas mais engraçado que isso, é que tu aprendeste linguagem gestual. Não me lembro de como te ensinei, mas sabias que os meus dedos a fecharem era sinal para vires ter comigo, assim como o meu pé a bater no chão. E sabias que o dedo indicador a apontar para o ar era sinal que te portaste mal. E o dedo a apontar para ti era para ficares quieto. Quando era criança achava tão estranho gritar perto de ti e continuares a dormir como se nada fosse. Ainda hoje há quem na família ache que tu não eras surdo, mas apenas fingias não ouvir ninguém. Também é provável, porque somos todos chatos.
Seres surdo era engraçado, mas também muito preocupante. Estávamos sempre de olho em ti, com medo que te perdesses, porque era impossível chamar por ti. Na verdade, essa foi uma das últimas partidas que nos pregaste: estavas com a minha tia e sumiste. E lá estavas tu, debaixo da cadeira do café que ficava na rua de baixo. O que foste lá fazer?
Também lembro-me de te ensinar a subir e a descer as escadas quando eras pequenino. No meu prédio e no prédio da minha avó. Depressa aprendeste, e também aprendeste um gesto que significava que devias subir ou descer sozinho. Quando a minha mãe chegava e te ia buscar à casa dos meus avós, descias as escadas sozinho, e também subias quando era preciso. Para certas coisas eras super obediente, para outras desobediente. Tinhas manias.
Quando era pequenino e ainda dormia com os meus pais, tu entravas pelos lençóis e ficavas entre os nossos pés. Também gostavas de dormir nas almofadas. Odiavas que te segurasse para dormir comigo, mas não te importavas se me sentasse contigo no chão e te fizesse festas na barriga.
Quando sai de casa senti a tua falta. Nesse momento, tomaste uma posição ainda mais importante na vida da minha mãe. Tive a chance de capturar todo o ambiente que vocês os dois viviam em uma só fotografia: tu e a minha mãe juntos, sonolentos, luz fraca, terço pendurado, as fotografias emolduradas, as pantufas no chão… a típica noite, tranquila, de vocês os dois.

a típica noite, tranquila, de vocês os dois.

Foste piorando aos poucos, muito devagarinho, e de repente a doença se apoderou exponencialmente de ti. Este eras tu há exatamente dois meses, no dia 7 de Setembro.

Este eras tu, duas semanas atrás. Doentinho, depois de te termos levado ao veterinário para tomares umas injeções (desculpa).

E este eras tu no dia que te foste embora. A última fotografia que existe de ti.

A viagem de carro entre a nossa loja e o veterinário foi, como disse, a pior viagem que já fiz. Mas ao contrário de mim, estavas sereno e calmo, no colo da tua dona, e eu do teu lado te admirava.



Todos estes detalhes que conheço de ti são algo que só se sabe de alguém com muita intimidade. É preciso construir uma relação com uma base sólida de amor para se chegar a conhecer alguém assim. Sinto a tua falta.

Queria que estivesses aqui para sempre. E de certa forma vais estar.
Obrigado por tudo. Foste muito importante e mágico. Tornaste a nossa vida melhor. Espero que tenhamos tornado a tua melhor também.
Do teu amigo que te ama,
Luís.



1 comentário:

  1. Vou sentir a tua falta: quando me mordias, vou sentir a tua falta quando mordias quem se atrevesse a provocar-te ou simplesmente tocar-te, vou sentir a tua falta, quando não paravas de tossir, vou sentir a tua falta quando mijavas a marcar o território, pois tudo te pertencia, vou sentir a tua falta quando mordias o pobre Fidel, que por ser cego ia contra ti e tu não perdoavas, vou sentir a tua falta quando insistias em montar a pobre e velha Sandula aproveitando a sua fragilidade, vou sentir a tua falta quando carregava contigo ao colo, vou sentir a tua falta quando sentia o teu hálito horrível, EM FIM VOU SENTIR A FALTA DE UM DOS MELHORES AMIGOS QUE JÁ TIVE. Fica em paz rabugento e por favor, não chateis a Sandula a Mizé a Huila, o Shissue, a Marquinhas, o Chiquito, o Roni, a Aninhas, o Saci I, a Cassiana e o pobre do Nibiru. FICA EM PAZ MEU QUERIDO

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